quarta-feira, 25 de maio de 2011

A QUASE SUICIDA QUE NÃO FOI.

Chamava-se Gertrudes e era uma brasileira, apesar de ter nascido de pais portugueses, ele o pai e como ela dizia, era de trás dos montes, algo como sendo fronteira com a Espanha e ela, a mãe, nascida e criada na Ilha da Madeira. Mas Gertrudes nasceu brasileira de corpo e alma, bonita e com olhos de uma cor, diga-se, bastante diferente, olhos verdes, mas como a cor das garrafas.

Gertrudes não gostava de fados, gostava de samba, de carnaval, de festas e dança, não apreciava caviar e preferia uma boa lingüiça frita, o que no termo exato para uma definição pessoal, incluía comportamento, gosto, preferência e uma série de coisas que molduram o caráter de alguém. Nasceu bastante pobre, mas tendo o que comer, os pais naufragados no Brasil para onde vieram pensando melhorar de vida, dois velhos xucros, ela lavadeira e ele carroceiro, sem que, no entanto os quase dezessete filhos que a portuguesa pariu tivessem que trilhar a mesma trilha. Desses todos somente seis vingaram e somente os mais novos porque os demais, estranhamente morriam aos sete anos de idade, vítimas diagnosticadas cientificamente por doenças e espiritualmente por uma apanha de um velho com um cachorro que no período mais crítico da doença, lhes surgia como um fantasma, assustando, mas somente visto por eles e lhes dizendo vir buscá-lo.

Gertrudes cresceu com responsabilidades de dona de casa mirim, tendo que ajudar a mãe em tudo que ela era induzida por terceiros a fazer, lavar, passar, costurar e outras de ajudante ou cuidando da casa. Os demais irmãos vivos, mais velhos que ela dez anos, foram se casando e trazendo as mulheres para dentro da casa da mãe já viúva, aumentando a família e as atribulações da rebelde Gertrudes que se via como gata borralheira. Mas ela era guerreira e não se deixava intimidar, freqüentemente sendo espancada cruelmente pela mãe por isso, com selvageria até, mas nunca se dobrando. Apanhou muito, de vara, pau e até caixote, sofreu muito, mas sorriu muito também em suas fantasias de menina pura como eram as meninas antigas.

Crescida Gertrudes casou com u homem por amor, mas não dormiu com ele na noite de núpcias, foi dormir com sua mãe porque ele na festa ficou de agarras com amigas prostitutas, se casou por amor com um único homem à vida toda, o primeiro namorado e ultimo, que se foi primeiro do que ela em muitos anos à frente. E foi mas ou menos depois de casada que a idéia de suicídio surgiu, se tornando para ela quase que uma obsessão, um suicídio sem causa.

Gertrudes adorava o mórbido, sempre foi mulher de querer ver de perto acidentes com vítimas, brigas, suicidas e tudo que relacionasse com a morte. Nada tinha de louca ou desregulada, mas ela era assim e a idéia de morrer se suicidando tomou força quando ela, ainda mãe de dois filhos dos três que teve, foi ver um suicida pendurado em uma árvore por uma corda no pescoço, achando bonita sua fisionomia de enforcado. A partir daquele dia começou a planejar para ela o mesmo destino, escondida do marido que nada desconfiava.

Chegado dia Gertrudes comprou uma corda e escondeu dentro de um fogão de lenha desativado, esperando cair à noite para no silencio da madrugada ir ter com seu louco sonho. Porém o destino não a deixou prosseguir, interferiu fazendo que por um acaso o marido descobrir a corda e, já meio inteirado de sua l maluquices a interpelar seriamente, avisando que ela até podia se suicidar, mas que ele não a enterraria e ela iría como indigente.

E decepcionada e já ocultamente planejando achar outro meio para completar sua fixação, Gertrudes foi dormir, sonhando então com uma Nossa Senhora das Graças que tinha em quadro na parede do quarto, a santa deixando a moldura e vindo até sua cabeceira, colocando a mão em sua cabeça e dizendo-lhe:

---- Afasta de ti este pecado minha filha. Vieste ao mundo para uma longa estrada e terás que trilhá-la até o fim, embora muito ainda tu venhas a sofrer com isto.

E a santa desapareceu, fazendo Gertrudes acordar e daquela noite em diante nunca mais pensar em suicídio.

Gertrudes que nasceu em 1901 viveu até setenta e quatro anos, uma vida sofrida e alegre ao mesmo tempo, passou ilesa pela devastadora gripe espanhola, depois pela Asiática e envelheceu conservada na fisionomia. Na vida sofreu ameaças do coração, tirou dois cânceres do ovário, sofreu e se curou da diabete, venceu uma quase mortal infecção nos dentes, sofreu muitas dores, desilusões, desgostos, mágoas e muitos outros sofrimentos entre a viuvez, mas a todos resistiu e superou, nunca se deixando abater. Gertrudes chegou a ser quase rica, voltou a pobreza e foi na vida um exemplo de coragem e perseverança, assim como também uma sempre animada carnavalesca e festeira, brincou muitos carnavais, foi a muitos bailes, envelheceu desfilando como baiana da escola de samba Imperatriz Leopoldinense, passou por um AVC que lhe deixou completamente paralisada, mas que retornou aos movimentos só restando pequena artrose nas mãos, e morreu finalmente anos depois vítima de um enfarto do miocárdio cujo sintoma escondeu a fim de não ser socorrida, acho que assim conseguindo finalmente seu objetivo, o suicídio, e talvez cansada de obedecer ao que a santa no sonho lhe pediu.

Gertrudes foi mulher guerreira que sem ser lésbica brigava com homem, enfrentava faca ou revolver de peito aberto, batia em quem lhe ameaçasse a prole, por ser autêntica e segura de si era mal falada e bem falada no bairro todo, mulher que discutia em nome de seus direitos, falava bastante palavrão, era dócil com amigos e cruel aos inimigos, mas nunca guardando rancores. Gertrudes morreu sem chorar, sem reclamar, sem pedir socorro, Gertrudes era a minha mãe.

Por Jorge Curvello

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