quinta-feira, 8 de março de 2012

RETROSPECTO


Quantas vezes alguns de nós sentamos quietos, retrospectivos, calados em um silêncio por vezes imaginário para relembrar nosso passado, indo fundo na lembrança até onde ela pode alcançar e passando as folhas dos maus momentos para parar nas que nos deixaram saudades. Hoje esse é um de meus dias, setenta anos depois de haver nascido, sentado em meu silêncio imaginário relembrando parte de minha vida.
Voltando bastante no tempo até onde à memória registrou relembro o dia em que ganhei meu primeiro velocípede, e único porque depois cresci e desejei ter uma bicicleta. Foi de ansiedade o dia esperando, ouvindo a toda hora minha mãe dizer que o Dragão da Rua Larga, antiga loja de serventias estaria chegando trazendo o meu desejado presente e ele chegou, quase noite, no lusco fusco do fim de tarde invadindo a travessa sem saída aonde eu morava e parando a mi nhá porta, enorme caminhão blindado  com aquele nome grande escrito na carroceria de aço, Dragão da Rua Larga.
 E a caixa foi descida, entregue e aberta, revelando a maravilha de três rodas e um pedal, vermelho e cinza se não me falha a memória, e logo eu estava nele pedalando no jardim sob a fiscalização de meu pai, homem sossegado e calado, sempre com aquele pijama listrado de pernas compridas e o sorriso patente no rosto enquanto minha mãe fazia o jantar. Há que vergonha meu Deus, naquele dia com um piri piri intestinal me sujei nas calças de borracha, calças que eu usava aos cinco anos de idade talvez por ainda urinar na outra. E foi aquele fedor e a interrupção da experiência, indo para um chuveiro de água fria ser lavado. Em saltos constantes eu vou relembrando essas coisas e algumas me fazem rir, outras encher os olhos d´água e lá vem mais.
Recordo que mais crescido gostava de fica balançando em um balanço cantando músicas de ídolos dos anos cinquenta, esgoelando sem ritmo e enchendo o saco de quem ouvia, mas era eu. Depois na rua era o assédio dos meninos me chamando de maricas, eram as meninas adorando me ter como companhia, era a chegada da noite e o correr para casa para lavar pernas e braços, pescoço e rosto em um tanque e isso era o banho todo, era o pavor da dor de dentes de quem tinha medo de dentista e sofria de cáries.
Aos domingos era aquele almoço em família, sempre galinha com batata ou macarronada, isso quando a penosa não era substituída por falta de grana pelos filhotes borrachudos dos pombos de meu pai. Mas tinha também carne assada, tinha peixes, tinha até bacalhau ou camarão quando acontecia o milagre e o gostoso era estar entre irmãos, pai e mãe e por vezes visitantes, todos reunidos conversando, rindo, comendo e eu, tomando meu guaraná, coca cola ou Guará, um derivado da frutinha do Amazonas.
E domingo também era dia quando adolesci de ir ao cinema ver filmes de aventuras, faroeste com índios que eu adorava, era dia de levar as escondidas farnel para dentro da sala de projeção, pedaço de frango assado e outros, só para não babar com água na boca quando Robin Hood comia aqueles frangos tostados espetado no seu punhal. Era tarde de na volta do cinema comprar sorvete bom na padaria perto, e a noite repetir a dose na esquina de nossa rua.
Nos dias comuns eram noites de reunir em uma esquina da travessa sem iluminação e ali, debaixo da luz que só tinha na rua principal, ficar com a turma de colegas, ouvir os mais velhos conversando e esticar o ouvido na curiosidade do querer saber dos assuntos, era as brincadeiras de pique esconde, pular amarelinha, jogar dadinhos de mármore, porque no dia a dia diurno essas coisas estavam presentes todos os dias depois da escola ou antes dela quando o turno era o da tarde.
E a puberdade chegou descobrindo a punheta, o desejo de outro corpo e a caça a uma namorada que nos fazia palhaços nos parques oferecendo músicas para quem nos ignorava, eram os sonhos de crescer e ter um casamento feliz, de ter um carro, dinheiro no bolso, filhos, passear, viajar, ter nossa própria casa e nossa própria vida.
Ah infância feliz onde ter ou não ter pouco importava porque se sonhava, divertia, vivia e se tinha o amor dos pais, dos irmãos, dos amigos e das pessoas nas ruas. Ah dias e noites de inigualáveis prazeres castos, do famoso diário com chave onde contávamos para nós mesmos nossos segredos, tempo dos gibis com aventuras de Búffalo Bill bem desenhadas, Flecha Ligeira do mesmo desenhista, Tarzan, Fantasma, Tigrana, Sheena,  Mandrake,  e tantos outros heróis que marcaram época até no cinema e de quem fazíamos coleções. Tempo das figurinhas trocadas, do jogo de bafo bafo, dos invólucros de maços de cigarro cada um valendo ponto maior, tempo dos programas de rádio sem ter televisão ouvindo novelas lacrimogêneas, escutando aventuras de heróis de todo tipo, cada um com horário marcado onde o rádio vivia aceso. Tarzan e seu grito singular, Capitão Atlas e o índio Chico junto com a onça Uruti, radar o homem do espaço, Ah tempos da praia de Ramos com cocô boiando na água, siris pegando no pé, banhos pelo despertar do dia e a noitinha, farras de sábados e domingo vendo pernas e coxas.
E o tempo passou e eu cresci mais e  me afastei desses prazeres, virei garoto rebelde do programa Hoje é dia de Rock e no meio da malta de falsos e verdadeiros parceiros transviados vivi anos de felicidade, impossíveis de contar aqui e indevido por ser proibido a menores de dezesseis anos. Era o tempo do colégio mais sério porque juravam que dele dependia nosso futuro, e então lá íamos nós nas gazetas da Quinta da Boa Vista e Zoológico, era tempo de andar nos estribos dos bondes, de usar uniforme como farda de guerra contra nossos inimigos de outro colégio, do porta caderno preso com cinto de couro sempre debaixo do braço ou pendurado no ombro, do sapato engraxado e roupa passada e o honroso símbolo do grau mais alto (divisas) no uniforme do ano final. era o tempo de decidir estudar de dia ou à noite, arranjar namoradas no colégio ou nas paqueras das gazetas, de provar do sexo com medo do casamento forçado, de conhecer as putas da Vila Mimosa ou rendevouz escondidos, mulheres que passavam álcool no pinguelo da gente antes de se entregar por dinheiro e juravam que éramos seu cliente predileto. Tempo das gonorréias seguidas e antibióticos  em seguidos tratamentos, do perigo da sífilis, da camisinha barata e grossa, do lençol de cama sujo de manchas pela manhã nas ejaculações noturnas.
Feito homem são tantas as lembranças boas que as más se apagam, lembrança do primeiro amor, sofrido ou prazeroso, do melhor emprego conseguido, das viagens mundo afora, do poder comprar, ter, abusar do gasto na esperança do dia do pagamento.
Recordo-me com saudade dos tempos em que trabalhei para a Sotreq, para a MGM na Cinelândia e tinha cinema sempre de graça, na Metalon onde nossa gostosa chefe, de corpo e de alma, era nossa parceira em farras depois do expediente, recordo-me das fugidas de meu bairro para divertir na cidade, no centro ou zona sul, e lá com uma turma de amigos leais invadir boates chamadas de inferninhos, encher a cara em final de semana, beber Rum, Gim, Cachaça e até de Cognac ou Campari e seguir na aventura penetrando em festa sem ser convidado, criando arruaças, levando porrada sem sentir dor, chegando em casa em estado lastimável para entristecer minha mãe. Ah como fui mau.

          Mais o Juízo chegou e o derradeiro emprego também, ser comissário de bordo, primeiro na Cruzeiro do Sul, depois na Varig, e nem preciso contar das vantagens, dos prazeres, das farras e de tudo de bom que por trinta anos aconteceu. Mas posso contar que vivi aventuras incríveis, conheci coisas incríveis, fiz amizades incríveis e acabei até me casando, uma faceta incrível.
E nesta esteira de lembrança, a cada ano mais velho muitas do depois me vão sendo esquecidas, diminuindo, se apagando por não ficar registrada na mente ou pelo desinteresse, restando apenas quando em vez momentos como agora, onde no meu imaginário silêncio me sento para recordar, tendo certeza que se viver mais por muitos anos essa esteira aumentará porque parece  que quanto mais distante aconteceu, mais nostalgia isso nos dá.

Por
Jorge Machado Curvello