terça-feira, 14 de janeiro de 2014

DIÁRIO DE UMA TRANSVIADA



 

 

Sinto-me só apesar de poder ter companhias, não sei o motivo, mas desconfio que é a insatisfação por ter tanta liberdade.  Somos agora a crista da onda, a faixa de presépio, chamados o movimento jovem traduzido pela maioria castradora, de rebeldia. De uma hora para outra viramos notícia alvissareira de tudo que fazemos, pensamos, agimos ou sonhamos, somente por desejarmos mais liberdade de ação e pensamentos, agora somos a nova juventude que explode ao som do Rock´n Roll, até para a igreja, um sacrilégio.  Mas será que somos mesmo tudo isso? Será que somos, felizes?

 Ah meu diário, único amigo em páginas e capa grossa sempre engavetado e trancado a chave nesta gaveta de toucador, se é que pobre pode chamar asim esse móvel barato mais parecido a uma cômoda antiga. Diário de adolescente, mas secretamente onde posso desabafar minhas angústia, meus temores, minhas desilusões.

Não sou mais uma virgem, abdiquei do símbolo da castidade em nome do progresso e, sendo inteligente, somente eu e meu querido e sacana padrasto sabemos disso, um guardião que jamais, pelo medo da cadeia, vai me delatar. Não sei se minha mãe desconfia, escondo as pílulas, escondo meus namorados, namorando na rua dizendo ir à casa de uma amiga. Subo a minha saia assim que deixo minha casa porque saia comprida e de beata, e uso batom vermelho e olhos marcados por rímel, imitando as atrizes do cinema. coisas que tenho que tirar da face antes de voltar para casa outra vez.

Meus sábados são movimentados mesmo tendo que voltar para casa antes das onze, mas por algumas vezes extrapolo mesmo recebendo umas bordoadas de minha mãe porque senão, onde gozar a vida somente indo a matinée, ouvindo rádio, freqüentando a igreja, ou ouvindo meus discos de vinil trancada dentro de meu quarto pela velha vitrola Belair? Ah como eu sou bandida, meu Deus.

 Nestes sábados loucos, invento desculpa e saio de casa ainda cedo indo para a Radio Mayrink Veiga no Centro do Rio de Janeiro, abandonando o subúrbio em troca de algumas horas de agitação, me juntando aos celerados, as garotas avançadas, trocando mentiras e boatos, rindo, dançando na rua mesmo sem música, mascando chicletes e enfeitada feito uma perua.  Se arranjo um gato, fico com ele, vou para os embalos de sábado à noite de carro ou moto, bebo álcool fingindo beber refrigerante, me dou inteira de corpo, mas não de alma porque sei que é somente prazer e nada mais.  Mas já volto para casa antevendo a tragédia, os berros, os gritos, as ameaças, que não se calam diante das minhas juras falsas e apregoações de que perdi a condução. E assim vou vivendo, podada, mentirosa, falsa menina comportada que guarda dentro de si, um demônio.

Nos embalos acontece de tudo, até streap se faz se a bebida pega, não há bandeira, não há limite, não há regras a seguir senão a da onda, a do grito de liberdade.  Horas que significam dias, meses e anos dentro de ponteiros que marcam começo e fim do período tão curto.

 Sei que sou mal falada na minha rua, que mães conservadoras temem suas filhas contaminadas pelo meu sucesso, que os rapazes sentem gulas sobre mim, mas não são os que aceito pela língua grande e falta de compostura, a que perto de casa se deve ter.

 Ah diário amigo, se pudesses ter contigo registrado tudo que faço nestas horas, tudo que sinto nestas horas, tudo que vivo, experimento, arrisco e desafio, certamente também tu me condenarias.  Mas no fim, diário, é tudo solidão, tudo um vazio, tudo inveja porque, mesmo imitando não consigo ser aquelas a quem tento imitar, que somente existem na minha ilusão porque da vida delas nunca pude conhecer como é, por ser pobre e suburbana.  Junto a elas até que me passo, mas eu sei que é tudo mentira e que logo vai acabar, que voltarei para o modesto e apertado apartamento de conjunto residencial na Penha, que me vestirei diante de um espelho pregado na parede, que tomarei banho em um chuveiro mal regulado, que usarei maquiagem barata comprada na feira livre e como as roupas, sem ter grife nenhuma, apenas como eu, sendo uma imitação. Vou sentir que retornarei ao prato feito de janta requentada, do café com pão e manteiga sem direito a queijo e geléia, à sagrada galinha com batatas de todos os almoços de domingo reunidos a uma mesa onde quem me comeu ainda me olha sequioso, mas sem me ter mais, sob os olhares incriminadores de minha mãe servindo, dividindo para a galinha dar para todos, ela, ele, eu, e os cinco irmãos menores que comem de mão suja. Voltarei à noite de domingo terminando para este quarto, solitária e triste porque somente existo alegre de mentira, Mas ao deitar a cabeça no travesseiro no escuro eu sonho, revejo os momentos bons que passei ao lado de um belo garoto, dono de carro, dono de moto, sinto ainda a ofegação dele na hora do gozo me fazendo gozar, me vejo rindo satisfeita e leve na saia curta, os olhos pintados, a boca retocada, o chiclete, o cubalibre geladinho, a elevação dos sentidos e o vôo para a loucura, a farsa, a eterna vontade insatisfeita, de ser, realmente feliz.

 

Por Jorge Curvello

ARLINDA, A QUE NÃO SABIA SER PUTA.


 

 

Isto aconteceu nos meados dos anos 50 e não é invenção, foi uma triste realidade a que testemunhei em anos onde ainda nem mulher como fêmea conhecia, mas os rapazes e garotos de onde me criei, sim.

 Arlinda era uma linda moreninha de corpo bonito, pouca altura e cabelos castanhos claros cortados na moda, aquele jeito bonitinho de aparar logo acima dos ombros e usar, revoltos, por toda a cabeça parecendo despenteados.  Cedo ainda, talvez aos seus dezesseis anos ela se perdeu, foi desvirginada por algum sabido e depois expulsa de casa pelos pais raivosos.  Sem ter para onde ir, acabou na sarjeta.

 Arlinda ficou conhecida no bairro de Ramos, subúrbio da Leopoldina por andar quase nua pela rua, às vezes na madrugada voltando para a favela onde se entocou somente usando calcinha e porta seios, um escândalo naqueles anos.  Mexia-se com ela falava palavrões, outro escândalo e as mulheres a discriminavam.

Não raramente era vista embriagada ou sob poder de drogas da época, o éter que se cheirava ou comprimidos, voltando das suas orgias que ninguém sabia onde acontecia, mas deixava mostras no seu corpo maltratado, às vezes mostrando queimaduras de cigarro no pescoço ou seios, pobre coitada. Ela passava nua, mas ninguém chamava a polícia, e mesmo se chamasse ela não acabava na prisão, era usada pelos guardas sequiosos de tarar uma ninfeta.

 Uma noite Arlinda veio caminhando a pé como sempre os mais de dois quilômetros que separavam a estação do bairro da favela perto da praia de Ramos e como sempre embriagada.  Na esquina da rua onde eu morava estavam mais de vinte rapazes na faixa etária entre vinte e cinco e dezoito anos conversando e logo eles puseram olhos gulosos em Arlinda. Alguns deles já haviam se relacionado com ela antes, no matagal ou canto escuro dos becos, e foi fácil seduzir a bêbada e arrastar para uma casa abandonada onde todos eles, o vinte, a usaram sem piedade e com brutalidade, um assunto gabado depois no dia seguinte com mínimos detalhes como se ela e seu corpo fossem troféu. Pobre ninfeta louca que tentava vender o corpo por dinheiro e sempre acabava lesada.

 Perto das duas horas da madrugada, quatro meninos de idade entre quinze e dezesseis anos viram Arlinda saindo da casa cambaleando, quase em poder andar e também visando usá-la a levaram com eles sem resistências para uma garagem da casa de um deles onde, na hora em que tiraram a pouca roupa dela constataram a menina em estado lastimável, a vagina em flor e sangrando. Penalizados eles abandonaram o tesão e trataram dela, deram banho, limparam a ferida com pedra desinfetante, a deixando depois dormir ali, mas na manhã seguinte sem agradecer, ela desapareceu. Pelo menos, esses não eram monstros.

 Arlinda, depois da noite do massacre, só foi vista no bairro mais uma ou duas vezes, depois desapareceu para sempre, alguns achando que foi parar na Vila Mimosa, a zona do baixo meretrício, outros achando que morreu.  O que se sabe é que Arlinda, a puta que não sabia ser puta, foi mais um exemplo de pais mal informados e impiedosos, capazes de abandonar uma cria somente pelo valor da sociedade, uma coisa que a virada dos anos para 60 veio a jogar por terra.

Pobre menina moça Arlinda, pobre deusa sem pedestal no bairro pobre, pobre alma desprotegida que o destino abusou.

 

Por Jorge Curvello

DO ATOR QUE POR DIREITO SOU, DO QUE NÃO FUI E NÃO SOU, DO QUE TALVEZ PODERIA SER.


 
Artista eu sempre fui desde menino, desenhava bem, depois pintei quadros, e na vida artística tive sonhos em me tornar ator. Cantar sempre cantei, com voz de cotovia rachada nos tempos de menino até melhorar e aprender canto um pouco, me registrar como cantor na Ordem dos Músicos, depois desistir dessa carreira porque não era mesmo minha praia.

Como ator, ainda jovem tentei a Herbert Ritcher, havia oportunidade em um filme de cangaço, mas desisti com medo de não saber montar a cavalo e depois, adormeci em mim esse desejo, mais levado por aparecer, ser famoso, do que propriamente pelo gosto da interpretação.

 Tornei-me um comissário de bordo e ali interpretei vários papéis a bordo dos aviões, nas chefias, entre os amigos e passageiros, enfim era o ator em mim se pronunciando, e nos tempos vagos dava uma de show-man me apresentando por hobby em clubes, boates e festividades. Ali valia a arte da dublagem de movimentos de algum cantor e dança conforme me aperfeiçoei nos anos 60 nos programas de rádio (Mayrink Veiga em Hoje é dia de Rock) e televisão (Canal Rio, programa do Jair de Talmaturgo ou do Chacrinha) que usavam de explorar essa modalidade sem pagar cachê.  E então me aposentei aos 53 anos de idade e fui à luta, fiz cursos de aperfeiçoamento, fiz peças e acabei com um DRT na mão, o registro que me tornou oficialmente ator de verdade.

 Estava com quase sessenta anos de idade, já não sentia mais desejo de fama ou aparecer, gostava de interpretar e era só, mas nada de graça porque agora, era de fato um artista regulamentado.

 A vida de artista no Brasil é difícil, diferente de outros povos onde dão valor à arte e aqui, dão valor ao quem indica ou simpatia pessoal. Sendo assim acabei na Globo, mas nunca passei dos Recursos Artísticos onde registram atores e deixam de molho, aproveitando o perfil e não a capacidade, pagando cachê menor do que contrato.  O fato de sentir que não me davam oportunidade de um teste para uma produção onde eu poderia e com capacidade mostrar meus dons de verdade, meu valor, me fez esmorecer, largar de mão e ficar de molho a espera de chamadas que foram diminuindo a partir de 1998 até desaparecer.  Aconteceu então a queda do Aerus e a necessidade de faturar alguma coisa, mas o corpo e a mente já não queriam mais e enfrentar estúdios e sets de gravação por doze horas não mais me apeteciam nem por necessidade.

A Rede Record me aceitou como ator diarista, pertenço a uma parte do departamento de elenco onde somente o perfil é procurado, não a arte, e como na Globo, comecei a fazer pequenos diminutos papeis, por bons cachês é verdade, mas só isso, nada de poder sentir o personagem e mostrar se sou capaz.  São uma, duas ou tre falas somente, ato curto e de minutos, mesmo contracenando com atores de peso, mas figura terciária, sem nome nos créditos da produção, algo que seria muito valioso para currículo.  Isso não é ser ator, nem figurante porque estes não são permitidos de falar em cena. É um cachê melhor, mas a comparação é a mesma.

 Na Record tenho mordomias, mais por ser idoso, nunca por ser ator. Ela nunca abre as portas dos testes, algo que poderia me lançar no estrelato, e eu já nem sei se quero isto porque não sei se aturaria assédio da fama, se dominaria à vontade de ficar em casa em lugar de dias seguidos em meses dentro de estúdios, aturar as picuinhas dos diretores, os desmerecimentos, a competição dos colegas de trabalho, os fuxicos, as fofocas, tudo que já provei sendo comissário de bordo, e odiei.  Fico então aqui, dentro de minha casa brincando quando em vez de ser ator, cantor ou dançarino, são coisas que sou por instinto.  Mas pergunto para mim mesmo onde está esse ator que tem número e DRT? Onde está meu valor apregoado na telinha ou sobre um palco?  Onde anda o ator Arlindo Duplo que assim me fiz e sub-intitulei?

 Do ator que por direito sou conto apenas com um documento, do que não fui e não sou culpo minha preguiça e falta de perseverança, do que talvez poderia ser, deixo por conta de um bom teste que somente assim poderia mostrar se aprovado e enfiado em alguma produção como ator, não coadjuvante.

 È minha gente... Um dia que quis ser famoso, aparecer, outro já não quis mais, em outro ainda faltou garra e desisti e hoje, apenas sorrio quando alguém me chama ou diz que sou ator.  Será que eu seria mesmo um astro? Será que faltou oportunidade de provar?  Não sei e pouco isso me importa agora aos setenta e dois anos de idade.
 
 

 

 Pelo próprio

Arlindo Duplo (Jorge Curvello)