quarta-feira, 30 de novembro de 2011

EU CRIANÇA... TEMPO DE ALEGRIAS E MEDOS

    


        Lembro-me de ter sido uma criança arteira, inteligente ao mesmo tempo em que medrosa. Vivi este tempo em anos onde havia mais pureza no ar, nos alimentos e nas mentes das pessoas, o que levava a acreditar em assombrações, mau olhado, praga, macumba e todo tipo de sortilégio que amedrontava. Lembro-me que não tínhamos muito, éramos pobres, mas vivíamos bem dentro do que a pobreza daqueles tempos permitia, comendo bem, podendo estudar, ir ao cinema, passear e o principal, ter colegas e amigos mais do que hoje onde todos se afastam entre si.
        Era comum em dias de semana fiarmos nas esquinas conversando em separados, crianças, adolescentes e adultos, cada um com sua turminha. Nos era vedado participar de conversa de adultos ou mais velhos, falar palavrões, saber sobre sexo, enfim vivíamos fora do modernismo que parece fazer perder a humanidade.
        Havia bonde, lotação, ônibus, trem “Maria fumaça” e o cinema exibia filme dirigidos a menores de idade por graduação, exibindo mais filmes de aventuras e faroestes do que dramas e estes, sempre eram para maiores de dezoito anos. Nossos dias eram feitos de ir ao colégio, estudar, pela manhã ou à tarde, mas com as horas vagas dos dias de semana apenas para brincar. Se estudando pela manhã, à tarde até o anoitecer era tempo de ficar na rua, em meio aos colegas brincando de pique esconde, de bandido e mocinho, andando de patinete, carrinho de rolimã, soltando pipa, ou então subindo em árvores do nosso quintal para pegar frutas maduras e tinha muitas. Se estudando pela tarde se invertia a hora de folguedo, mas com prejuízo porque não havia muito com quem se brincar. Praia somente nos finais de semanas e acompanhado dos pais ou algum responsável e não era para passar o dia todo, era dividido também em manhãs ou tardes e eu, morando perto da praia de ramos, subúrbio da Leopoldina no RJ, que ainda era mais limpa apesar das fezes boiando ou cachorros dividindo a água conosco,  freqüentava bastante.
        As noites eram sempre de agonia para mim porque temia ir ao dentista e tinha cáries, e as danadas ameaçavam fazer doer o dente sempre ao cair do sol. As mães de subúrbio cuidavam menos da saúde dos filhos que pouco adoeciam e somente tratavam alguma coisa quando a coisa pegava e dente cariado não era doença, mas habitual na molecada onde tomar banho quase sempre era lavar pernas, braços e rosto e fingir que estava limpo.  Depois das seis horas da tarde começavam as séries de rádio, não havia televisão e toma de acompanhar os seriados do Capitão Atlas, Jerônimo, Radar, Tarzan e outros heróis, vindo depois à fatídica e igual Hora do Brasil, transmitida em cadeia, uma chatice. A hora das novelas eram sagradas e colocava todos em volta de um rádio fanhoso, sendo sonoplastilizada nas rádios, Tupi, Tamoio e Nacional, as três brigando por audiência Mas eu gostava de ouvir, criando em minha mente fantasiosa cenários e fisionomias dos personagens através dos descrições de um narrador.
        Mas havia a hora do medo e ela vinha através do programa chamado “Incrível, fantástico, extraordinário”, narrando episódios macabros de terror, com almas penadas, lobisomens, mulas sem cabeça e até tecidos tomando vida animada, apavorantes, algo que gelava o sangue de crianças e adultos, fazendo  uma rapaziada que ouvia o programa em minha casa, sair depois agarrados uns aos outros, homens feitos e também cagões. E a alegria era comemorada a luz do dia, para o medo ser sentido a luz elétrica  
        Nos finais de semana era acordar cedo tomar café com pão, cuidar dos bichos de criação, se sábado ir a feira livre com a mãe e se domingo esperar a vinda de um barbeiro falador para cortar nosso cabelo em casa, e infalivelmente almoçar com toda a família reunida, e era obrigatório, pai, mãe e irmãos animados ao redor de mesa farta, sendo galinha, macarronada ou carne assada os pratos de luxo. E então havia cerveja para adultos e refrigerante para menores, mas só neste dia.
        Alguns gastavam a tarde de domingo indo ao cinema em seção de matinées outros dormindo, mas era dia de tomar sorvete nas padarias depois do filme. A noite se ia a um parque mambembe ou circo ou se ficava em casa fazendo o dever de casa do colégio. Não se namorava antes dos dezoito anos e não se fazia sexo mesmo sentindo o começo da puberdade a mais do que uma atrevida e escondida masturbação Mente pura em corpo sano, se usava dizer.
        Das alegrias havia a de se viver com menos violência, informações, gente má, contato com a natureza em vez de computador ou televisão, comer melhor mesmo no barato e isso incluía camarão, bacalhau, pratos hoje desaparecidos da mesa dos brasileiros pobres. Era costume se ir a enterro, casamentos com roupas novas, batizados e aniversários, fazer piqueniques, ter pavor do defunto nos gurufins e se temer a passagem dos desaparecidos carro coche. Se dava valor em se  ver o sol nascer em uma madrugada quando se podia voltando com nossos pais de alguma festa ou então se eles permitiam  acordarmos fora de hora. Era gostoso de se ter cachorro de estimação, um ou vários, criar galinha em terreiro, pássaros em gaiolas, caçar rã em vala para comer, criar girinos em garrafas com água,  usar atiradeira, bodoque, matar pernilongo no tapa e rezar para pulga nos deixar dormir. Tudo isso era bom demais. As noites eram para reviver os medos, ver coisa que não existia, ouvir sons que não haviam, escutar histórias de pavor e acreditar.
        Hoje tudo acabou, continuam existindo crianças, mas muito do que existiu de bom na minha infância se perdeu. Hoje garotos se tornam homens cedo demais e se tornam pais sem crescer, meninas se tornam mulheres e mães fora do tempo, pais vivem separados e nem sabem direito quem criam, e avós não ninam mais neto, casais se separam por qualquer motivo ou traem por qualquer desculpa, os alimentos cheiram a plástico e cinemas quase não existem. Os filmes são modernos, usam de efeitos que estragam a fantasia mental, falam de atrocidades a mais do que amor, buscam cada vez mais a separação do homem de sua alma.
        Viva minha infância de alegrias, e medos.



Por Jorge Curvello

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