sábado, 28 de janeiro de 2012

TRAGICOMÉDIA NA LAPA

         

Doca era como ele era conhecido e ninguém sabia seu nome verdadeiro. Uns achavam que era Antonio Carlos, outros Eduardo e ainda mil suposições, mas o verdadeiro nome, só a mãe dele deveria saber, mas ela já estava morta.  Figura notória na Lapa dos anos cinquenta Doca viva de rufianagem, jogatina e muita mulher, todas atraídas por seu corpo musculoso , a pele morena e a cara de bebê com fome.
Naquele sábado, o último de Doca, ele andou sabe-se lá por onde o dia todo e certamente esteve com mulheres, uma aqui de manhã, outra na hora do almoço, outra pela tardinha e podem ter certeza que com todas, na cama. Sábado é dia de festa, de encontros, de bebedeiras e também onde desafetos escolhem para resolver suas pendências sabendo sempre mais vulnerável o inimigo e acho que foi por isso que Doca nem chegou a ver o cabaret da Lapa abrir as portas, caiu na calçada de um dos bares de esquina na grandiosa Lapa dos malandros, vestindo ainda uma calça de linho branca e sem camisa, deixando ver no corpo dois furos feitos com afiada faca, um nos rins e outro no pulmão,
      Curiosos pararam depois que o crime aconteceu e o assassino ganhou mundo, um negro alto com cara de tigre, pararam para ver Doca imóvel, deitado de bruços no chão com o rosto na poeira e olhos entreabertos como sonhadores, mas nada enxergando no corpo morto. Ajoelhada perto dele segurando um de seus braços mole uma mulher descabelada chorava falando palavras que ora fazia rir a escondido a pequena multidão, ora fazia chorar, e ela parecia ser a mãe do filho de Doca, uma criança de dois anos, inocente colada a ela chorando também, mas de medo e não por Doca.
      Uma outra mulher, vestindo extravagante e calçando sapatos de salto altíssimos que exuberavam suas pernas roliças dentro de meias de seda escura chegou e limpou, disfarçada, um dos olhos com a ponta de um lencinho rosa tirado da bolsa a tiracolo, depois uma ponta do batom escorrido do lábio que mastigava o fim de um sanduíche de mortadela comprado no mesmo boteco de onde Doca saiu para morrer. Olhando a outra chorando, a puta falou baixinho só para uma mulher da multidão ouvir.

      --- Essa daí deve ser a corneada. Esse daí era de todas e talvez ela nem sabia disso.

E ela se foi rodando a bolsa porque para ela o sábado estava somente começando.

Logo  chegou outro falador, dessa vez um crioulo velho vestindo terno de linho branco, que parou perto do corpo, olhou ao redor e se abaixou como se fosse parente do defunto fresco. Mas não era, pelo que  se  ouviu ele falar espantando alguns e fazendo rir a outros.

--- Hmmm. Ele era de Xangô, dá pra ver pela guia no pescoço.  Vai meu zi fio, teu pai te chamou e tu vai pra cucuia, lugar de pobre como tu.

No canto alguém vestindo calça apertada e blusa de manga bufante colorida virou o rosto e cochichou para o vizinho e colega.

      --  Pronto. Lá se foi o bofe e nem deu tempo de eu pegar. Eu estava amaciando ele a cada noite, só na cerveja, mas demorei na cantada e agora tá aí, frio e servindo pra mais nada.

      Eis que chega outra  mulher, esta vestindo saia rodada com padronagem de calçadão, batom vermelho e lenço azul prendendo os cabelos tingidos, a idade estampada nas rugas do rosto.

      --- Safado. Me passou a perna o danadinho.
Achou de morrer logo hoje que prometeu pagar os atrasados dos quebra galhos. estou sem sorte mesmo, vou é procurar um terreiro.

      Na multidão alguém comentou para o vizinho do lado que chegou atrasado ao show gratuito.

      Porra meu, o cara tava podendo. Uma mulher chorando, um viado de olho, uma puta lastimando a perda, um pai de santo inventando história e uma cafetina reclamando. Era boa pinta o safado e quem matou devia  tá com inveja, perdeu no carteado ou ele botou chifre. Essa Lapa tem história.

E a polícia chegou com aquele camburão preto e branco, os meganhas saltaram e a multidão abriu revelando o corpo frio de Doca que nem estava ali pra eles todos.  Um dos policiais perguntou.

-- E a mulhé aí, é amante, esposa ou parente do presunto?

A chorosa descabelada nada respondeu, continuou atracada ao braço frio do cadáver.

O mesmo policial, olhando a turma fez outra pergunta.

--- E aí rapaziada. Alguém viu quem fez isso?

Ninguém respondeu, todos olharam e se entreolharam procurando ver quem ali tinha coragem. e o policial perdeu a paciência.

--- Ninguém viu, ninguém fala, e o que faz essa dona aí que chora e não diz nada?

      O crioulo velho que até então parecia rezando ponto de macumba olhando doca, parou o balbucio e olhou para cima na direção do policial.

--- O seu guarda aí me permite. A dona aí não é nada dele não. Tá chorando porque o defunto tá usando o relógio roubado do marido dela. É por isso que não larga o braço do coitado.

      Os policiais afastaram a roda, a chorona foi mandada embora sem levar o Cartiê folheado, o preto velho cruzou passes no copo de Doca e foi embora, a puta tratou de rodar a bolsa longe dali e o discípulo de madame Satã escafedeu trotando rápido na direção da Cinelândia.  Pouco a pouco a multidão também se dispersou e o corpo bonito e maculado de Doca ficou enregelando no asfalto velado por policiais  a espera de um rabecão.

      Assim era a Lapa dos velhos carnavais.

Por Jorge Curvello

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Não desmereça a Internet com palavras chulas.
Obrigado