segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

TARDE DE PAGODE EM MADUREIRA





Lenita saiu de casa toda emperequetada, a saia mais do que passada a ferro de mão, uma blusa nova enviesada, um ombro de fora outro não comprada junto com a sandália salto alto no mercadão, o cabelo pranchado preso em um rabo de cavalo sob cordel com continhas brilhantes, nos trinques, e aquela pose de pretinha gente fina quando na carteira só tinha o da passagem. Ela ia para o pagodão de Madureira situado no clube do mesmo nome.
No portão da casa conversando com vizinhas a mãe perguntou ao lhe ver fazendo sinal para uma van.

--- Já vai menina?  Toma juízo e não volta tarde. Tarados andam a solta e bala perdida também.

Ela fez que sim com a cabeça balançando o rabo de cavalo que não fosse a prancha, ficava duro que e nem pau.  Lenita não era bonita, mas era vaidosa ao extremo e tinha pose, só pose e muita vontade de ser patricinha. O rosto mais borrado do que maquiado pelo excesso de cores a deixava gaiata, exótica, já que nunca foi bonita.

No clube o batuque estava bom, soava alto, no palco um grupo se balançava ao ritmo cadenciado da melodia cantada por um mulato sarado dentro de roupas apertadas tendo outros sorridentes por companhia com instrumentos na mão,  e a volta do palco ainda pouca gente esticava o pescoço olhando, cantando junto e rindo, com as mãos naquele gesto de Padre Marcelo Rossi. A festa só começava e prometia acabar lá pelas onze da noite.
Lenita chegou e não se misturou, correu olhos pra todo lado buscando somente ela sabia o quê e foi para perto do bar, se encostando no balcão com peitinhos enfunados dentro da blusa leve, protegidos pelo soutien.  Lenita se achava o máximo, mas seria?

Aos poucos iam chegando mais convidados, rapazes alegres, cara de funkeiros que naquela tarde pareciam dispostos a azarar no pagode.  Lenita olhava para eles de soslaio, evitando aproximações, apenas medindo, procurando sabe se lá o quê.  Pouco depois chega uma mulata, gostosa, elegante e com porte de rainha dentro de um vestido creme de tecido solto, leve,  bicos na saia, salto mais do que alto em sandália de tira trançada na canela, moça alta,  cabelos encacheados no dread caindo até abaixo dos ombros, uma deusa morena, de rosto de anjo, mas olhos de demônio que vê Lenita e esnoba, passa por ela sem olhar e vai receber os “olá”,  “salve”, “bem vinda nega”, “o quê que há”, saudações do pessoal do bar, do clube todo, até dos que já chegaram ou vão chegando e Lenita, sozinha no  seu canto, dá ombros e faz beicinho.
A noite cai e o pagode rola solto, salão cheio, mesas ocupadas, cerveja rolando  em latinhas nas mãos da freguesia de pé e em garrafas nas mesas dos mais empossados e daqui e dali, pratinhos de tira gosto, azeitonas verdes, lingüiça calabresa fatiada frita na cebola, churrasquinho de espeto na farofa,  e aqui e ali em mesas isoladas e raras, uma garrafa de Royal Label.  A festa está no máximo, mas em como todo pagode que se preza não há salão pra se dançar, e a dança acontece ali mesmo no meio das mesas porque onde deveria ser está lotado de gogós empinados cantando, olhando, acenando pro grupo pagodeiro.
Lenita já mudou de posição mais de dez vezes, falou com algumas conhecidas, mentiu acerca de paqueras que não teve, filou um guaraná de uma colega e beliscou do pratinho de um negão simpático, apressado em atender a namorada longe dali, que passou por ela com um pratinho de calabresa na mão.  Mas a rainha destronada de Sabá não perdia a pose e se  balançava de leve sob o embalo da música, sem querer perder a pose ou destoar no salto alto.
Uma parada acontece na hora do descanso do grupo de cantantes e a turma se espalha, é hora de Lenita se empertigar, fingir que não vê quando está vendo tudo, fazer pose de negrinha difícil pra algum mulato vir pegar. O balcão superlota e o empurra empurra começa, obrigando Lenita a se refugiar atrás de uma pilastra para se livrar dos empurrões.  Na cabeça um pensamento reprovando.  --- “Gente sem educação, cambada de gado”  ---  E escondida atrás do concreto, ninguém nota Lenita, que finge não querer se notada, mas anseia por um simples perdido olhar de piedade.
Um branco chega, franzino, trajando pobre, na mão uma lata de cerveja barata e no rosto simples de peão iniciante, um sorriso.

-- A mina ta sozinha?

Lenita empertiga o corpo, fecha o semblante, olha adiante enquanto responde.
---- Antes só do que mal acompanhada... Se despache.

O rapaz desmancha o sorriso decepcionado e vai embora sem olhar para trás e novamente a pilastra fria e a companheira de Lenita,

O som recomeça, agora mais esfuziante, mais ousado, já ninguém, menos Lenita que mantém a pose de recém chegada, agüenta a sedução do balanço e o corpo ondula, requebra, sapateia, é o pagode começando a se despedir para fim de baile.  Mas Lenita , ela continua perfilada, parece até recepcionista de hotel sob vigilância de supervisor.  E o reloginho de camelô enfeitadinho preso em seu pulso mostra os minutos correndo, a hora avançando e o fim do pagode se aproximando sem ela “descolar” ninguém.  No corpo antes reluzente de creme para pele o brilho começa a ofuscar devido ao calor e o produto de marca barata usado, começa a perder os efeitos, deixando o negrume da pele da pretinha começar a ficar opaco. Somente o cabelo resiste, o rabo de cavalo balançante nos volteios da cabeça  inquieta de Lenita buscando em todas as direções, fingindo que não.
Vinte e duas horas, vinte e duas e cinco minutos, vinte e duas e dez e Lenita começa a achar que é hora de ir embora, mais uma vez sem ter descolado ninguém, mais uma tarde de domingo perdida, mais uma noite de domingo vazia ao som quente do pagode de Madureira.
No canto do baile, bebendo sozinho o rapaz branco continua olhando Lenita, querendo Lenita sem ela entender, ou entendendo e querendo lhe esnobar. Também satisfeito e cansado, pensando nos tijolos e sacos de cimento que terá que carregar na obra assim a segunda feira comece, ele deixa a latinha de Itaipava sob uma mesa já vazia e se vai, desaparece no meio da multidão que já começa e se dispersar.
Lenita olha mais uma vez o maldito reloginho barato e balança a cabeça, tem que ir embora ou vai chegar tarde  em casa e escutar os xingamentos da mãe.  De soslaio procura pelo salão e olha a mulata de vestido leve e saltos altos, cabelos cacheados, jogada nos braços de um perfeito deus negro, engomado em camisa fina de cor sadia e calça froxa da ultima moda, tesão de homem, tesão de carteira porque sobre a mesa o lixo de pratinhos de tira gosto vazios e cascos de cerveja demonstram. De longe, ruminando sua revolta ela vê o beijo acontecer, longo, molhado, de língua. E então, com olhos úmidos Lenita desvia o olhar da mulata rainha.


Vinte três e quinze  e na rua deserta Lenita chega em casa, sobe os degraus da escadinha da entrada onde antes a mãe sentada conversava com vizinhas, gira a chave na fechadura e penetra na sala humilde,  segue direto para o seu quartinho modesto, bem arrumado, colorido de enfeites arranjados, com os pés doloridos se livra da sandália e massageia sentada na cama de colcha florida as panturrilhas esgotadas pela seção de espera no pagode. Barulho de chinelas se aproximando mostra à figura gorda da mãe preparada para dormir e então a voz meio rouca chega antes da figura dela.

--- Menina, menina, tu já passou dos trinta. Quando é que vai arranjar um marido, um amante, um encosto, qualquer coisa pra não encalhar?  Mais uma vez voltou sozinha não foi?  Ta bom, ta bom... Se emperequetou  pra nada e por mais uma vez.  E como estava lá, o pagode?

Lenita não falou nada, continuou se livrando das peças de roupa olhando altiva sua imagem no espelho da penteadeira barata.  Sem responder a mãe que logo foi embora, apagou a luz  e se esticou na cama quente sob o vento morno do ventilador.  Lá fora um cachorro latiu e na cabeça de Lenita somente a imagem da loja de roupas na Rua da Alfândega onde ela tinha que estar antes das nove da manhã de segunda feira.

Por Jorge Curvello

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