domingo, 7 de abril de 2013

MARIA DAS MERCÊS

 

O nome por si só dizia, aquela que vivia para ajudar, fazer benefícios, nem que isso viesse a lhe prejudicar. O nome de fato era Maria das dores, outro prejuízo para quem espera não sofrer vida afora, mas até então Maria era feliz.
Ela vivia em um apartamento confortável mesmo não sendo grande, em prédio de dois por andar no Andaraí. Era aquele apartamento dos sonhos, aquele que se luta para conseguir e se consegue, aquele que traz a paz e a felicidade por dentro e por fora e Maria era feliz, casada há dez anos com Jair, um homem trabalhador, desses que somente vive da casa para o trabalho e do trabalho para casa, não gostava de beber mais do que social, fumava pouco e sempre separado, um tipo de macho sarado, de boa altura e cabelos aloirados fugindo ao ruivo, pele clara em tipo de mulato misturado que disfarçava o sangue negro e quente correndo nas veias. E Jair tinha um amuleto de estimação, uma medalhinha sem cópias cunhada pelo pai e dada a ele para proteção, virilidade perene, e sorte com as mulheres. E Maria não tinha do que se queixar da atuação na cama, sempre viril, pronto a qualquer hora, com a coisa boa que entrava sem machucar porque como ela classificava, parecia borracha dura, mas maleavel. Enfim Maria estava com tudo e nunca prosa, simples, arrumando os cabelos quando tinha que sair, botando leve batom, um pouquinho de rouge perfumado (coisa antiquada), usando sempre vestidos de tecido leve, mas sem ser colado ao corpo, enfim uma mulher comum, ou quase.
Sua vidinha era acordar, passar o café para seu homem, verificar se a roupa dele de trabalho estava limpa e bem passada, dar beijinho à saída da porta na despedida diária e depois, barba, cabelo e bigode nas tarefas do lar. Pela tardinha meio exausta se sentava para ver o vale à pena ver de novo da plim plim , arranjar o jantar e tomar aquele banho para quando seu homem chegasse estar perfumada e limpa, uma esposa cuidadosa. Ah, e como Maria era feliz.
Um dia, no supermercado cruzou com Creuza, morena fogosa, de ancas balançantes e seios ajustados, anéis espalhados nos dedos com unhas feitas e pintadas de vermelho, brincos em argola sob mechas de cabelos tratados e negros, pulseiras nos pulsos, enfim uma morena do tipo cigana Esmeralda do filme Corcunda de Notre Dame, e para as invejosas, uma árvore de natal fora de estação.  Deu-se então aquele olhar, aquele sorriso rápido, aquele cumprimento educado e polido e ambas foram às compras, saindo quase juntas em dois caixas vizinhos para na rua que era a mesma do apartamento de Maria se dar então a descoberta que Creuza era a vizinha do lado, a única do pequeno corredor que desembocava no elevador do prédio de seis andares.  Nascia ali a amizade de porta colada.
Em um final de sábado monótono de subúrbio junto com Jair terminando de ver o Zorra Total, Maria falou despreocupada.

--- Amor... Amanhã teremos uma visita para almoçar. Convidei a nossa vizinha aí da porta ao lado, mulher direita, sossegada, caseira e que mora sozinha junto com um gato, pelo que ela me falou.

Jair fez que sim com a cabeça e continuou rindo do quadro alegre do programa, somente parando de rir quando o programa acabou, foram os dois para a cama e ele a cobriu com tudo, até seu peso, antes de pegar no sono sem roncar, um privilégio a mais do macho de Maria.

No dia seguinte, domingo de sol, por volta das onze horas da manhã a campainha da porta tocou e Jair, de pijama listrado sem nada por baixo, deixando ver o volume do cacho balançante, cabelos desarrumados como era de hábito, largou o jornal no sofá e se arrastou para abrir a porta, dando de cara com Creuza, a morena tipo Esmeralda do filme clássico, parando ali de boca aberta.  Encantados seus olhos não sabia se paravam nela em cabeça tronco e membros, com demora nas ancas e nos seios, ou se por praxe dizia “bom dia”, como vai, entra por favor.  Dos fundos da cozinha veio Maria das Mercês enxugando a mão com um pano de prato limpo, sorriso no rosto alegre e muita boa vontade para esbanjar.

--- Oiiii,..  Entra Creuza, mas não repara a bagunça.

Creuza entrou sorridente, olhou e procurou a bagunça na casa arrumada, menos pelo jornal de Jair solto desfolhado sobre um sofá, deu um passo à frente, cruzou beijinhos na face com Maria e depois, somente depois, estendeu a mão para Jair no singelo e devido “muito prazer”.

O almoço foi super divertido, galinha ao molho pardo, arroz, salada verde, vinho do bom e a cerveja de Jair que ilustrou a sala com o brilho dos dentes alvos em mais de mil sorrisos e afabilidades, um gentlemam divertido e servil que ajudava Maria nos serve serve e assuntos de mesa.  E depois foi aquela tarde maravilhosa.

Seis meses se passaram e daquele almoço para frente Creuza foi só, bom dia, boa tarde ou boa noite, dependia da hora em que Maria ou Jair cruzava com ela no prédio ou na rua, vizinhos que se respeitavam e nada mais.  Porém Jair já não era mais o mesmo para Maria, vivia se ausentando muito de casa, inventando mil desculpas nos atrasos para o jantar ou sempre mostrando vontade de nos finais de semana ficar em casa quando ela ia a missa ou ladainha da igreja, embora na cama, comparecesse sem máculas. Mas lhe faltava agora algo sempre presente em seu pescoço, à medalhinha cunhada dada pelo pai falecido que Jair disse que perdeu.
As diferenças do marido eram tantas que um dia Maria suspeitou, teve um sonho chato onde Jair lhe enganava, mentia e fazia sofrer, e a partir daí começou a cobrar mais do marido que sempre saia pela tangente deixando Maria com remorsos, lhe dizendo que era injusta com ele que sempre foi para ela como o Salve Jorge da novela das nove, justo o Tell sempre enrolado com mulheres, nunca herói, mas molenga e sempre levando as sobras.   Ele tanto fez que Maria acabou indo se confessar, comungar e de hóstia ainda colada ao céu da boca rezar pra santa de fé e prometer que jamais voltaria a desconfiar de Jair.
No prédio, Creuza continuava a mesma, pouco aparecendo no corredor, ou na porta do seu ap, pouco sendo vista no mercado, ou se quer no bairro, uma mulher a prova de todo respeito e pudica e foi para ela que Maria, ainda dentro de suas desconfianças traindo sua jura foi se queixar, escolhendo uma tarde sem sol durante um cafezinho sentada no macio e fofo sofá da sala da amiga para abrir seu coração de mágoas, até quando o café acabou no bule e Creuza se levantou para ir buscar mais na cozinha, deixando Maria procurando seu lencinho de seda porque seus olhos ardiam de lágrimas. Foi aí que ao procurar o lenço no sofá seus dedos tocaram algo frio, pequeno, de metal e ao puxar da dobra a coisa, deu com a medalhinha cunhada de Jair.
O choro secou nos olhos, o soluço empacou na garganta, à vontade de tomar café desapareceu e quando Creuza voltou trazendo o bule Maria já não estava ali, estava em casa caída em sua cama desfeita chorando um rio de angústia.
Quando Jair chegou, ela, de mansinho o recebeu, deixando ele a beijar na testa como sempre fazia, ir tomar seu banho cantarolando a velha canção de sempre, sair se enxugando respingando o chão encerado da sala e ir a procura do pijama no quarto, a peça estendida arrumada sobre a cama. E lá estava sobre ela a medalhinha cunhada limpa e reluzente do brilho dado por Maria, um recado que somente burro não entenderia e Jair pareceu o animal de quatro patas voltando com a medalha na mão para a sala, já vestido no tradicional pijama listrado, sorridente a exibindo.

.--- Você a encontrou querida? Onde é que estava?

Quanto cinismo, ela pensou. Então Maria mentiu, disse que achou no quarto embaixo da cama, levantou-se e foi servir o jantar. Mas no dia seguinte, uma terça feira, quando Jair telefonou dizendo que deveria chegar mais tarde para jantar ela não reclamou, mentiu que iría ver a mãe em Caxias e que ele tomase o tempo que precisasse fora, fez duas malas e as deixou escondidas na casa do zelador do prédio sob favor, indo depois ficar na tocaia longe dos olhos do marido.
Passava das vinte e duas horas quando Creuza de camisola vindo atender a campainha de sua porta não entendeu vendo uma mala deixada ali com um bilhete grudado que dizia.

--- Comeu da carne querida, agora roa o osso.

Ainda menos ao botar para dentro  a mala, abrir e ver ali toda a roupa de Jair que ainda nu deitado em sua cama a esperava para completar o sarau.

Mais tarde Jair ao entrar em sua casa também não entendeu a bagunça, a falta de tudo na cozinha, no banheiro,  no quarto, os móveis danificados, e surpreso com Maria ausente  abriu o bilhete preso na porta da geladeira vazia.

-- Fui amor, fica feliz com a sua medalhinha. Ela pelo menos você ainda tem.

No Andaraí ninguém mais soube do paradeiro de Maria das Mercês, mas há quem diga que em Caxias uma mulher viva bem com a mãe, estudou depois de velha e se formou, entrou para um partido político e foi eleita vereadora, passando a ganhar os tubos e ter quantos homens queria, todos sem medalinhas cunhadas. E que essa mulher se chamava Maria das Mercês.

Por Jorge Curvello

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Não desmereça a Internet com palavras chulas.
Obrigado